![Em Santa Maria, centenas de garotas brincam na hora do recreio entre as aulas ministradas de manhã e à tarde (Foto: Joédson Alves)](https://lh3.googleusercontent.com/blogger_img_proxy/AEn0k_t-Gyv82BLWv1kavg6lCRyDcxMsbE2Lq2oi8PUpzdSRAJFmv53rU2mEgXIGZO5eR3_7h-qiJi6dz5w3nG_BiLZOhBNzlRrHVA2B29K-h_b74p-MizTTfX7c2Ka-3_mPDtjCln5NRvLXjZMh5hV4FrRgJ4IVAFl8johvM0im8H8iiRaM1KbZ3PT6aARntSM=s0-d)
Em Santa Maria, centenas de garotas brincam na hora do
recreio entre as aulas ministradas de manhã e à tarde (Foto: Joédson
Alves)
por Lilian Tahan
Noite de sábado. Garotas se ajeitam em cadeiras
de plástico enquanto aguardam a projeção das imagens da novela em uma
parede. Nenhuma delas, no entanto, sabe do barraco que Félix, de Amor à Vida,
aprontou durante o jantar na segunda (4). Há dois motivos para isso. O
primeiro é que o instituto Vila das Crianças, administrado por freiras
em Santa Maria, proíbe televisão durante a semana. Quando o veto cai,
aos sábados, entra a segunda explicação: as 900 adolescentes acompanham
apenas os capítulos de Jumong, folhetim produzido e exibido na distante Coreia do Sul.
Essa é uma entre as muitas peculiaridades na incomum
rotina das moradoras da Vila das Crianças. Fundada em 2001, a
instituição mantida pela ordem das Irmãs de Maria de Banneux, da Igreja
Católica, abriga e educa meninas pobres de vários estados brasileiros.
Desde 2006, contudo, o lugar está na mira do Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios. No último dia 16, o MPDFT retomou uma
investigação sobre os critérios legais de seu funcionamento.
Embora seja endereço de jovens, a vila das meninas,
como ficou conhecida a escola, não autoriza o uso de celular, tem
horário determinado para dormir (às 9 e meia, inclusive nos fins de
semana) e só admite namoro por carta, meio de comunicação usual dentro
da instituição. No complexo de 20 000 metros quadrados de área
construída, com quatro prédios, ginásio e piscina coberta, a prioridade
está voltada para os estudos e a disciplina é rigorosa. Qualquer mãe
ficaria com inveja ao espiar o dormitório das garotas, onde os lençóis
são esticados a ponto de fazer uma moeda atirada na cama pular.
Cobertores e toalhas postos a secar viram laços ou cortininhas nos
beliches. O chão por onde circulam centenas de jovens, 55 professoras e
dezoito freiras tem a aparência mais limpa que a de piso de hospital. E
são as próprias meninas que, aos sábados, faxinam o quarto.
De segunda a segunda, o tempo das internas é dividido
entre obrigações escolares, esportes, oficinas profissionalizantes,
dança, coral, música e até cuidados com o jardim. Praticamente todas as
atividades estão concentradas dentro de um terreno concedido pelo GDF em
2000 na região administrativa de Santa Maria. As meninas que moram no
internato dificilmente saem da vila. “De vez em quando temos alguns
passeios externos, mas imagine a logística para levar 900 garotas a
qualquer lugar”, diz Maria do Rocio Fava de Sousa, diretora pedagógica
do instituto.
Curso de corte e costura: uma das opções de atividades profissionalizantes (Foto: Joédson Alves)
Recrutadas de famílias carentes e, não raro, com
histórico de violência, as meninas chegam com 12 anos, quando ainda
cursam o ensino fundamental, e saem depois da formatura do ensino médio — a idade-limite é de 18 anos. No
tempo em que passam lá, elas podem escolher cursos profissionalizantes
como secretariado, técnico de enfermagem, de saúde bucal, corte e
costura. “Muitas de nossas alunas se destacam”, afirma a freira mexicana
Margarita Campos Abeja, que dirige a Vila das Crianças. A religiosa
conta que duas ex-alunas foram selecionadas para atuar na Austrália e na
Coreia do Sul como bolsistas do Ciência sem Fronteiras. Ela explica que
o objetivo central do projeto idealizado pelo americano Aloysius
Schwartz é a educação curricular e não a formação de freiras. “O projeto
existe no Brasil desde 2002 e até hoje apenas dez meninas decidiram
fazer os votos”, relata a irmã.
A ordem da qual Margarita faz parte sustenta outros
institutos sociais com regimes semelhantes ao de Santa Maria em países
como México, Coreia do Sul, Filipinas, Guatemala e Honduras. No Brasil, a
Vila das Crianças é a única instituição mantida pelas Irmãs de Maria de
Banneux, que aplica 500 000 reais por mês para financiar o projeto.
Mas, no que depender de representantes ligados aos
direitos da criança e do adolescente no DF, ela pode deixar de existir
nos moldes atuais. Pela interpretação dessas autoridades, a escola tem
as características dos antigos internatos, modelo de ensino que não é
mais aceito no Brasil. Em outubro, por iniciativa da Promotoria da
Infância e da Juventude do MPDFT, a Justiça reabriu um processo que
investiga o enquadramento legal da Vila das Crianças. No último dia 16,
agentes ligados à Vara da Infância, ao Conselho Tutelar e ao Ministério
Público fizeram uma inspeção no local. “A legislação estabelece que a
privação de convívio de uma criança ou de um adolescente com sua família
só é aceita quando autorizada judicialmente”, afirma a promotora de
Justiça Luisa de Marillac.
As alunas são responsáveis por manter a limpeza e a organização dos quartos onde dormem (Foto: Joédson Alves)
Em 2006, a Vila foi alvo de uma denúncia feita por uma
família que relatou dificuldade de ver a filha fora do período das
férias. Na época, o juiz entendeu que o lugar seguia, sem prejuízo para
as jovens, os princípios de uma escola. O caso acabou arquivado. Para o
MP, no entanto, trata-se de uma entidade de acolhimento institucional
com regras que não estariam sendo respeitadas. Segundo a lei, por
exemplo, esse tipo de abrigo pode atender, no máximo, vinte jovens. E os
alunos deveriam pertencer à comunidade local. Na vila de Santa Maria,
mais de 700 meninas vêm de fora.
“Trata-se de um sistema que se aproxima da clausura,
com o bônus de uma boa educação, mas o ônus da segregação social”,
entende Francisco Corrêa, integrante do Conselho de Direito da Criança e
do Adolescente, responsável por emitir o registro de funcionamento de
lá. “A Vila das Crianças não é um abrigo ou um internato. Tem a
documentação que a define como escola, e por isso não cabem esses
questionamentos”, argumenta a advogada Fernanda Toscano, do escritório
Caputo Bastos e Serra, que representa a instituição. Integrante da
Arquidiocese de Brasília e desembargador do Tribunal de Justiça do DF,
Roberval Belinati faz um alerta: “Espero que as autoridades tenham muita
cautela com esse grandioso trabalho feito em favor da juventude
brasileira”.
Por dentro da rotina delas
6h Hora de acordar. As meninas têm trinta minutos para se aprontar e arrumar o quarto.
6h 30 Elas revisam as tarefas cobradas em sala de aula.
7h Café da manhã. O instituto montou sua própria panificadora, que produz 1 000 pães por dia.
8h Início das aulas. A escola segue o currículo do Ministério da Educação. As professoras são leigas.
12h Almoço.
As refeições são elaboradas em uma cozinha industrial, ondeas
funcionárias preparam 145 quilos de arroz, 65 quilos de feijão e55
quilos de carne.
13h Retomada das aulas. As garotas praticam esportes, dançam, estudam música e frequentam cursos profissionalizantes.
16h45 Tempo livre. Elas se reúnem no campo de futebolpara brincar de amarelinha,corda, bola, pique-pega.
17h30 Momento em que tomambanho e lavam suasroupas íntimas.
18h Jantar.
19h30 Elas fazem as tarefas para as aulas do dia seguinte.
21h30 Todas as luzes são apagadas.Hora de dormir.